17 de novembro de 2011

Paris é jazz

Edmilson Siqueira

Eu gosto de jazz, não sou um expert no assunto, mas sei reconhecer a diferença entre um bom jazzista e um Kenny G, por exemplo. Paris deve ser considerada por muitos como a segunda terra do jazz. A primeira, claro, são os EUA, onde o dito cujo nasceu, rebento dos blues sulistas que vieram na garganta e na cabeça dos escravos africanos. Aqui no Brasil deu samba e chorinho, lá deu blues e jazz. Claro que não é tão simples assim, mas a raiz é a mesma mama África, terra do todos os ritmos e de todos os lamentos.

Uma das épocas de ouro de Paris, entre as duas grandes guerras mundiais do século passado, teve no jazz sua maior expressão musical. A música parisiense ou francesa, por um desses mistérios do universo, era tímida e regionalizada. Eram canções de amor, lentas e datadas, que abasteciam apenas o mercado interno e as cabeças mais presas ao próprio país. Claro que havia bons artistas, mas o francês universal, que nascia no ufanismo do progresso e na euforia da agitação cultural, tinha no jazz sua mais perfeita tradução musical. É curioso: o país, a capital principalmente, tinha grandes artistas da literatura, do teatro, das artes plásticas – pintura e escultura – mas não tinha um grande artista da terra fazendo o que poderia ser a música para a trilha sonora daquela efervescência. Era o jazz que vinha dos EUA que permeava as festas, que animava os bares, que era ouvido em todos os cantos onde qualquer tipo de vanguarda se manifestasse.

Piano, bateria e contrabaixo animando o Le Petit Journal Montparnasse... C'est ça, le jazz !

Essa fissura do francês moderno, ente 1914 e 1939, pelo jazz acabou atraindo os grandes nomes dos EUA para lá. E, depois de derrotado o nazismo, o jazz explodiu como um grito de liberdade pela noite parisiense, cravando uma influência que nem os amores franceses pela bossa nova, nas décadas de 1960/70 conseguiram superar.

Hoje é fácil descobrir o quanto foi gravado por lá com nomes que vão dos pioneiros Django Reinhardt a Louis Armstrong e Stan Getz. A grande Diane Krall gravou seu primeiro DVD em Paris, só para ficarmos num exemplo mais recente. E é fácil perceber também que Paris tem muitas casas noturnas dedicadas quase que exclusivamente ao jazz. Um passeio rápido pelo Google desvenda atrações para todos os gostos jazzísticos. Há jazz moderno, tradicional, quartetos, quintetos, trios, solistas, bandas que misturam jazz com outros ritmos – a chamada fusion inaugurada por Milles Davis, também um frequentador da noite parisiense, mas já na década de 1950 – e muito mais.

A capa de uma das diversas coletâneas que Chet Baker gravou em Paris.

Para se ter uma ideia mais precisa, num dos primeiros sites que apareceram na tela do micro – Jazz à Paris - havia essa programação em setembro, chamada, aliás, de petite sélecion: Festival Metis (Drillscan de Montreuil, 8 au 18 septembre); Julien Soro Big Four (Sunset, 8); Morgen Naughties (Tam de Villiers, Sylvaine Hélary, Karsten Hochapfel)(Kibele, 8 septembre)- Chris Corsano, Denis Tyfus … (Kobé, 9 septembre) ; - Une Fleur Dans le Chaos (59 Rivoli, 11 septembre); Arat Kilo & Mulatu Astatké (MAHJ, 11 septembre); Orchestre National de Dgiz, avec Fabien Rimbaud (Alimentation Générale, 14 septembre); Experience Sonique #9 (Combustibles, 15 septembre); Paris Jazz Club «Armstrong» (20 septembre, rue des Lombards); Médéric Collignon, Claude Parle, Fred Marty (Bab Ilo, 20 septembre); Anne Pacéo 5tet (Ermitage, 21 septembre); Spoumj (22 septembre, Olympic Café); Mesa of the lost women w. Cathy Heyden … (Instants Chavirés, 23 septembre); Leandre, Caron, Perraud (Triton, 23 septembre); Arat Kilo (Sunset, 24 septembre); Alain Pinsolle Chtarbmusic 4tet (La Java, 26 septembre); Leila Olivesi 5tet (Ermitage, 28 septembre); Matthieu Calleja, Sébastien Bouhana (Kobé , 28 septembre); Hasse Poulsen (Triton, 30 septembre). E nela não estava incluído o Festival de Jazz de La Villette, de 31 de agosto a 11 de setembro, uma tradicional atração do fim do verão parisiense.

Antigo cartaz com a programação do clube de jazz Le Petit Journal Montparnasse.

Enfim, pra mim Paris tem tudo a ver com o jazz e é essa música que sentia quando andava pelas suas praças e boulevards depois de um dia inteiro de passeios a lugares históricos e museus. Ou quando parava, fim de tarde, para uma cervejinha gelada, de preferência a Seize, apelido dado à ótima francesa 1664, que não encontro mais por aqui.

Mas, confesso, não fomos muito felizes quando procuramos jazz em Paris, em 2002. Na viagem do ano anterior, quase nem saímos à noite, pois chegávamos ao hotel no início da noite cansados de tanto andar pela cidade. Era banho, um jantar rápido, às vezes um passeio curto ali perto do hotel e cama. Balada nem pensar. Mas, na viagem seguinte, decidimos que íamos sair pelo menos uma ou duas noites para ver e ouvir jazz. Aliás, no primeiro dia, ao entrar na estação do Metrô, vi um cartaz de um festival de jazz (não me lembro se era o La Villette, que começava em 6 de setembro). Nossa viagem de volta era para 5 de setembro...

Um jazzman dita a trilha sonora do passeio sobre a ponte Saint-Louis (Foto: Thomas Errera, 2008).

Sem saber por onde começar, descobri num guia uma casa noturna perto do hotel em que estávamos. Era – é ainda – Le Petit Journal de Montparnasse, um nome que me atraiu talvez por ser jornalista. Li que era uma casa tradicional de jazz, por onde passaram grandes nomes desde a segunda guerra etc. e tal. Vimos no jornal do dia a atração da noite – um nome estranhíssimo por sinal, sem referências explícitas. Zezé ligou lá para fazer uma reserva. Perguntou, em inglês, se era jazz aquilo que estava programado. A resposta foi meio reticente do tipo “podemos dizer que sim”. Como quem atendeu falava pouco inglês, resolvemos arriscar. A casa é bonita (vi recentemente na internet e ela está ainda mais bonita), espaçosa, um palco meio íntimo como se deve quando o assunto é jazz. 30 euros por cabeça com direito a um couvertizinho de amendoim e uma jarrinha de vinho. Zezé pediu tinto e eu, como estava calor, fui de rosé. O meu acabou logo, antes de começar a música. Pedi outra jarrinha (18 euros) e quando estava enchendo a taça, a atração musical entrou no palco. Zezé e eu nos entreolhamos desconfiados. Duas mulheres vestidas com trajes típicos de algum país do norte ou do sul da Europa ou da Austrália, sei lá, e uns instrumentos estranhos que pareciam violão, violino, cavaquinho... Disseram alguma coisa numa língua tão estranha quanto as roupas e começaram a desfilar o repertório de... canções folclóricas de alguma região perdida nas estepes russas! Ouvimos umas três músicas, o tempo que durou a outra jarrinha de rosé, pedimos a conta (85 euros) e fomos embora dando risada do mico.

Dia seguinte, conferimos a atração da noite no jornal: piano, bateria e contrabaixo e um “jazz ensemble” no nome que não deixava dúvidas. Mas assim mesmo ligamos para confirmar. Por volta das dez horas começou a tocar um trio jazzístico da melhor qualidade, que nos preencheu a noite e nos fez esquecer a “balada” furada da noite anterior. A volta pra o hotel, na noite fresca de fim de agosto, ali pelas duas da manhã, foi a pé mesmo, por ruas semidesertas, tranquilas e, principalmente, seguras.

2 comentários:

Gisèle disse...

Infelizmente não encontro mais a 1664 por aqui, que pena! Então compro a Stella Artois... Ótimo texto, parabéns!

Ana Bresil disse...

Um caso engraçado e cheio de poesia. Em Paris, não poderia ser diferente ...